Pressa de sei lá o quê

Já tem uns dias que penso na minha avó. Ela é uma personagem icônica das minhas histórias. Acho que herdei dela essa capacidade de provocar reações diversas apenas por ser o profeta do óbvio.

Ela era uma frasista inacreditável. Mesmo sem nem ter terminado a quarta-serie, era dona de um arsenal de ditos que guardo até hoje. Não fez curso de nada, não tinha formação acadêmica, nunca pisou em uma universidade. Não lembro de vê-la anotando nada em caderno. Ela era terapêutica, precisa e bem-humorada nas frases ditas com uma amor que nunca conheci.

No fundo da casa dela — como uma boa casa de vó — havia uma variedade enorme de plantas, verduras e terra. Entre elas, havia o mais querido entre os netos, o pé de cana-de-açúcar.

Era ali naquele quintal terroso, com uma modesta tira de cimento cinza que ela gastava toda sua inesgotável paciência com a gente. Quase toda semana, uma ou duas tardes que fosse, ela passava ali sentada numa cadeira de varanda, com uma bacia branca no colo, descascando a cana-de-açúcar em pedaços proporcionais ao que cabia na nossa boca de criança.

Era a nossa sobremesa. Me lembro inclusive de um dia que a vizinha levou um pudim holandês daqueles de padaria para nos alegrar, mas a gente desdenhou de todo aquele leite condensado para focar nas lascas de cana com a vovó. Era um ritual.

Naquele tempo, eu achava que o motivo de passar todas aquelas horas ali era por causa da cana em si, mas hoje, quando revisito essa memória, eu sei que não era isso. Eu gostava de ver ela descascar. Como uma cerimônia de Oscar.

Ela esperava a gente pedir pelo momento. Nunca se ofereceu de antemão, mas não era porque não queria, mas sabia esperar o desejo sair em nós. Ela sabia esperar. Colocava o tênis velho com o calcanhar de fora do sapato, ia até as tiras de cana, escolhia um caule robusto, fibroso, articulado com uma metodologia desconhecida e descia a faca afiada bem perto da base como um samurai. Pouca força, muita precisão. Era um golpe articulado.

Puxava aquele bastão de açúcar pra lá e pra cá e destilava uma segunda facada mais delicada. Vinha pelo resto do verde com aquele pedaço considerável nos ombros. Seguia o caminho de restos feito entre a terra com os de lajotas como quem tinha caçado um animal perigoso.

Sentava-se na cadeira de área. Nos alertava sobre a distância segura e desfiava as partes laterais primeiro com a faca. Era como se despir antes de um banho. Em seguida, vinha cortando o caule entre as fibras, com a maior destreza, paciência e calma do mundo. Só havia uma regra: Não podia começar a comer antes que tudo estivesse cortado. Minha vó temia que um neto comesse mais que o outro se a coisa não fosse organizada.

A gente passava um tempo bom ali assistindo ela despenar aquele tronco fino e grande de puro açúcar. Aquilo não era só uma cana. Era parte de quem minha avó era. Toda aquelas tranquilidade e serenidade de quem sabia o que estava fazendo. Ela tinha um equilíbrio entre a agressividade necessária e a delicadeza possível que transbordava a mansidão. O que parecia ser uma pacata senhora agradando os netos era também uma aula de sossego.

Eu sempre me perguntava porque ela simplesmente não comprava uma maquina que a poupasse daquele trabalho ou até mesmo nos colocava para ajudar a economizar seu tempo. Mas hoje eu sei: ela não tinha medo de gastar tempo com o que amava.

Toda vez que alguém sugeria que tinha uma quantidade boa já dentro do pote para começar a comer, ela falava: “Ara, pra que essa pressa?”. Ela não se sentia lenta, não estava competindo, não tinha medo de ser a legítima baiana que era.

No fundo, escondia naquela falta de pressa uma atenção carinhosa, uma intenção afetiva e a calma necessária para amar. Ela não tinha a ânsia de fazer aquele momento acabar. Ás vezes, cantarolava um hino.

Devagar, o balde ia se enchendo e a nossa expectativa se esvaziando. Ela entendia que o resultado daquilo, era só o consequência do momento. Ela não tinha obrigação de metas, nem nada que a balizava. Ela estava apenas ostentando o tempo.

Outro dia, me dei conta de que estava atrasado para uma reunião online. No desespero de não deixar as pessoas esperando, derrubei o computador no chão tentando conectar a câmera. Eu vi um pedaço da tela rachado, mas ele ainda estava funcionando bem.

Respirei. Liguei a câmera, entrei no link às pressas e descobri que a reunião tinha sido cancelada. Me avisaram, mas eu não vi a mensagem porque estava ocupado demais com meu atraso. Quis ser mais rápido do que precisava.

Naquela hora, escutei a Dona Maria me dizer: “pra que essa pressa? Pra onde vai assim, menino? Tá indo para onde com essa afobação?”

Não é que apressado come cru, apressado, hoje em dia, acaba nem comendo. Talvez eu precise plantar um pé de cana aqui no canteiro da avenida. Talvez eu tenha que aprender a cantarolar mais. Talvez eu deva lembrar daquela senhora negra que não tinha pressa de viver tudo o mais rápido possível.

O andar devagar e sempre talvez seja o grande segredo dela. Pra que essa pressa?

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